Tradutores: Ana Paula Pires dos Santos, Rachel Riera
20 de maio de 2020
David Nunan
O autor lidera o programa de Ensino de Cuidado em Saúde Baseado em Evidência da Universidade de Oxford
Na segunda-feira, 18 de maio, o governo do Reino Unido acrescentou a perda do olfato (anosmia) e do paladar (ageusia) à lista de sintomas da infecção pelo coronavírus que deve alertar as pessoas a se autoisolarem por 7 dias. Até então, apenas febre e tosse eram sinais desencadeadores para que as pessoas se isolassem caso tivessem a infecção e pudessem disseminá-la.
Então, por que a adição destes sintomas agora? O site do governo afirma: “Temos acompanhado de perto os dados e evidências emergentes sobre a COVID-19 e, após profunda reflexão, estamos agora confiantes o suficiente para recomendar esta nova medida.” Não é fornecido nenhum link para os “dados e evidências emergentes”.
Alguns foram rápidos em apontar que a anosmia tinha sido um sintoma bem estabelecido da Covid-19 meses antes do anúncio do governo. De fato, a Organização Mundial da Saúde listou-a como um “sintoma menos comum” em de 17 de abril, com agências americanas seguindo o exemplo logo depois.
Questões importantes são levantadas. Que evidências apoiam este sintoma adicional? Quando essas evidências surgiram? É possível ser infectado pelo coronavírus e ter apenas este sintoma? Quão comum é a anosmia [aguda] na ausência do coronavírus?
A base da evidência emergente para anosmia e Covid-19
Nos últimos meses nós temos compilado as evidências sobre os sintomas do coronavírus/Covid-19. Nós temos focado em pessoas com infecção confirmada pelo coronavírus, o que significa predominantemente pessoas que foram hospitalizadas e testadas para o vírus. Na nossa última atualização, em 29 de março, nós identificamos a maior revisão sistemática disponível de estudos que avaliaram os sintomas. Os sintomas mais comumente relatados nesses estudos foram febre (81-88%), tosse (66-71%), e fadiga (44-60%). A anosmia não foi identificada em nenhum dos estudos incluídos nesta revisão sistemática. Os revisores buscaram apenas evidências publicadas até 25 de fevereiro de 2020.
Nossos colegas identificaram as evidências de anosmia na covid-19 até o dia 23 de março e as classificaram como “limitadas e inconclusivas”. O primeiro estudo que eles encontraram mencionando anosmia foi um relato preprint (não revisado por pares) de um estudo chinês, publicado em 25 de fevereiro, relatando uma prevalência de 5%.
Desde então, novos estudos têm relacionado a perda do olfato e do paladar com a infecção pelo coronavírus. Nossas buscas, incluindo estudos até 18 de maio, identificaram um total de 22 revisões sistemáticas, três das quais abordam especificamente as evidências de anosmia (e condições relacionadas) e incluem muitos dos estudos mais recentes.
A primeira revisão sistemática, publicada em 13 de abril, incluiu cinco estudos com um total de 1.556 pacientes hospitalizados e identificou outros sintomas respiratórios, mas não encontrou estudos sobre covid-19 e anosmia ou outros distúrbios olfativos. No entanto, os revisores não estavam procurando especificamente por anosmia.
A segunda revisão sistemática (Tong e colaboradores), publicada em 5 de maio, incluiu 10 estudos com um total de 1.657 participantes (em qualquer cenário) que analisavam especificamente disfunções olfativas. Os estudos incluídos, de 9 países, foram publicados entre 26 de março e 22 de abril; um estudo incluía participantes chineses, e nenhum incluía a população do Reino Unido. A prevalência combinada de disfunção olfativa foi de 53% (IC 95% = 30-75%, n=1.624, Figura 1). A heterogeneidade foi muito alta (I2 = 98,8%), com proporções variando de 5% a 98% (ver Figura 2). Os autores também destacaram evidências limitadas de um estudo no qual a anosmia estava presente em 73% dos 237 casos antes do diagnóstico de covid-19 e foi o sintoma presente em 27% dos casos. De um modo geral, a qualidade dos estudos foi considerada baixa, com autorrelato de sintomas e inclusão de pessoas sem diagnóstico confirmado de covid-19 e histórico de disfunção olfativa antes da pandemia, limitando a confiança nos achados.
Figura 1. Proporção de participantes relatando disfunção olfativa a partir de estudos incluídos na revisão sistemática de Tong e colaboradores (barras de erro = intervalos de confiança de 95%). Os estudos estão listados cronologicamente pela data de publicação.
Uma terceira revisão (não ficou claro se foi sistemática apesar do título), publicada em 10 de maio, analisou especificamente a anosmia e identificou 31 estudos, incluindo os 10 estudos da segunda revisão descrita acima. A apresentação narrativa dos dados dificulta a síntese dos achados, e os autores não consideraram a qualidade ou heterogeneidade. Também faltaram citações na lista de referências, dificultando a verificação da acurácia dos dados relatados.
Assim, a revisão declara a inclusão de quatro estudos do Reino Unido (apenas 3 puderam ser confirmados), incluindo dados transversais de um estudo preprint em andamento sobre vigilância de sintomas e que relata perda de olfato e paladar em 59% das 579 pessoas que se autorrelataram positivas para a covid-19. A taxa correspondente em 1.123 pessoas relatando resultado negativo para cocvid-19 foi de 19%. Estes dados foram posteriormente revisados por pares, com 65% dos 7.181 casos positivos e 22% dos casos negativos relatando perda de olfato ou paladar. As limitações desses dados incluem a amostragem não aleatória, a natureza autorrealatada do desfecho e da exposição, o desenho transversal e o efeito da cobertura da mídia nas respostas. Para seu crédito, os autores avaliaram o impacto potencial desta questão e descobriram que ela pode ter influenciado as respostas no Reino Unido.
Figura 2. Prevalência combinada para disfunção olfativa observada na revisão sistemática de Tong e colaboradores, demonstrando uma heterogeneidade muito alta.
Resumo
As evidências da anosmia como um sintoma da covid-19 começaram a surgir no final de fevereiro e estavam restritas a populações chinesas. A partir do final de março, estudos de outros países, além da China, começaram a surgir e relataram anosmia e perda de paladar e olfato como um sintoma em pessoas com covid-19. Um grande estudo, revisado por pares, de comunidades no Reino Unido e Estados Unidos e publicado em meados de maio, indica que quase dois terços dos casos autorrelatados como positivos para covid-19 referem perda do olfato ou paladar em comparação com um quarto dos casos negativos. Uma reanálise extremamente cautelosa dos dados de Tong e colaboradores mostra que de 30% a 80% dos casos confirmados de covid-19 relatam perda de olfato ou paladar até meados de abril (Figura 3).
Figura 3. Metanálise cumulativa da proporção de casos confirmados de covid-19 relatando disfunção olfativa a partir de seis estudos incluídos em Tong e colaboradores. Esta análise precisa ser interpretada cautelosamente dada a presença de heterogeneidade muito alta.
Um dos potenciais impactos negativos da adição da perda aguda do olfato ou paladar à lista de sintomas que indicam autoisolamento é o número potencial de casos falso-positivos. Distúrbios olfativos, incluindo anosmia aguda, ocorrem com frequência em resfriados comuns e gripes. É provável que haja muitas pessoas que apresentarão sintomas, mas não têm coronavírus.
As evidências atuais são predominantemente de baixa qualidade, principalmente devido à natureza retrospectiva e transversal dos desenhos de estudos incluídos. Estudos em andamento usando o rastreamento de sintomas em usuários saudáveis para acompanhar prospectivamente o desenvolvimento de sintomas são necessários para reduzir a incerteza. Tais estudos também devem indicar quando a presença de anosmia ocorre em relação a outros sintomas, o que será crucial para ajudar a reduzir o número de casos falso-positivos.
Sobre o autor: David Nunan é professor e pesquisador Sênior, Nuffield Department of Primary Care Health Sciences e Diretor do Post Graduate Certificate in Teaching Evidence-Based Health Care.
Agradecimentos: O autor agradece a Jeffrey Aronson e Helena Nunan pelos importantes comentários em uma versão anterior.
Declaração de transparência: As opiniões expressas neste comentário representam as opiniões dos autores e não necessariamente as da instituição anfitriã, do NHS, do NIHR, ou do Departamento de Saúde e Assistência Social. Os pontos de vista não são um substituto para o aconselhamento médico profissional.