Tradutores: Luis Eduardo Fontes, Ana Luiza Cabrera Martimbianco, Rachel Riera


A morte do oftalmologista chinês Li Wenliang em Wuhan no mês passado levantou muitas preocupações. Avaliamos aqui uma delas: a possibilidade de que o β-coronavírus, que causa COVID-19 e SARS-CoV-2 (também chamado 2019-nCoV), possa afetar os olhos e causar conjuntivite, e potencialmente ser transmitido por meio de fluidos oculares (estando o paciente com conjuntivite ou não ).

O SARS-COV-2 é um vírus de RNA de fita-simples encapsulado que possui uma glicoproteína apiculada e interage com o um receptor de ligação. O receptor é a enzima conversora de angiotensina 2 (ECA-2), que é expressa nas membranas de muitas células do corpo, incluindo os tratos respiratório, renal e intestinal, e as células cardíacas e imunológicas. O SARS-CoV-2 foi detectado no sangue, escarro, urina, fezes e secreções respiratórias de pacientes infectados. A ECA-2 é encontrada no humor aquoso e na retina, mas não nos epitélios conjuntival ou corneano.

O coronavírus, ligado ao seu receptor na superfície celular, é internalizado por endocitose, replicado, e liberado para infectar outras células. A infecção pode levar à desregulação de citocinas, responsável pela doença respiratória aguda potencialmente fatal.

Os vírus que causam doenças respiratórias também podem causar complicações oculares em indivíduos infectados, e podem estabelecer infecções respiratórias após a exposição ocular. Por exemplo, em furões, aerossóis dos vírus influenza podem mediar a transmissão respiratória do vírus para animais saudáveis.

Alguns coronavírus podem causar conjuntivite em humanos. No entanto, o domínio de ligação ao receptor não é o mesmo para todos os coronavírus, e isso fornece evidências insuficientes para demonstrar que o SARS-CoV-2 é transmissível pela conjuntiva. O SARS-CoV-1 (anteriormente SARS-CoV) se liga ao ACE-2 e parece infectar linhagens celulares semelhantes in vitro. Como os receptores da ECA-2 não foram observados na conjuntiva ou na córnea, a transmissão a partir de gotículas propagadas pode ocorrer quando partículas virais nas lágrimas são drenadas, pelo ducto nasolacrimal, para o trato respiratório.

SARS-CoV-1

O vírus SARS-CoV-1 não foi detectado pela reação em cadeia da polimerase com transcriptase reversa (RT-PCR) nem isolado por cultura viral de lágrimas ou raspados conjuntivais obtidos de 20 pacientes com infecção por SARS-CoV-1, durante o surto de Hong Kong em 2003. Por outro lado, amostras de lágrimas foram positivas para RNA viral durante os primeiros nove dias da doença em três dos 36 pacientes com infecção por SARS-CoV-1 em Cingapura.

SARS-CoV-2

Um estudo de swabs conjuntivais de pacientes com COVID-19, mas sem sintomas oculares, mostrou um resultado claramente positivo e dois resultados provavelmente positivos para o RNA viral. Em 31 pacientes com infecção por SARS-CoV-2, nove dos quais foram gravemente afetados, amostras de lágrimas e secreções conjuntivais apresentaram resultados positivos por RT-PCR em apenas um paciente com conjuntivite.

Também houve relatos de um médico que cuidou de pacientes com COVID-19 e que desenvolveu conjuntivite “vários dias antes do início da pneumonia”, e um paciente chinês na França que apresentou febre, rigidez, fadiga, conjuntivite e tosse. A missão conjunta OMS-China no COVID-19 estimou a incidência de congestão conjuntival em 0,8%, com base em um estudo com 55.924 casos laboratorialmente confirmados de infecção por COVID-19.

Outros coronavírus

O HCoV-NL63, o coronavírus de New Haven, foi identificado pela primeira vez em um bebê com bronquiolite e conjuntivite e, posteriormente, em três crianças com conjuntivite associada a infecções do trato respiratório por HCoV-NL63. No entanto, os relatos clínicos sugerem uma baixa incidência de conjuntivite com outros coronavírus. Por exemplo, conjuntivite foi registrada em 6 de 261 (2%) casos de infecção por coronavírus da síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS-CoV). Os swabs conjuntivais de 5 de 76  (7%) dromedários, hospedeiros animais, mostraram-se positivos para o RNA viral.

Recomendações para oftalmologistas

A proximidade entre os oftalmologistas e seus pacientes levantou preocupações de que eles estejam em risco de serem infectados pela transmissão por meio de gotículas de tosse ou espirro. Para pacientes assintomáticos e sem fatores de risco, a Academia Americana de Oftalmologistas (AAO) e o Royal College of Ophthalmologists do Reino Unido (RCOphth) recomendam medidas genéricas para proteger os oftalmologistas contra infecções, e incluem práticas de desinfecção intensivas,  protetores plásticos para lâmpadas de fenda, redução ou eliminação de conversas com o paciente durante o exame com lâmpada de fenda, reduzir o tempo gasto com o paciente na lâmpada de fenda e considerar se as investigações oftalmológicas, como imagens oculares, são críticas para o processo de tomada de decisão. Ambas as organizações recomendaram o cancelamento de tratamentos não urgentes.

Conclusões

  • As evidências até agora são de que secreções conjuntivais e lágrimas de pacientes com infecção por SARS-CoV-2 podem conter RNA viral.
  • Menos de 1% dos pacientes com infecção terão conjuntivite. Eles podem representar um risco maior do que aqueles sem sintomas oculares.
  • Os profissionais de saúde devem assumir que os fluidos oculares de todos os pacientes são potencialmente infectantes.
  • Os profissionais de saúde devem usar proteção ocular ao lidar com pacientes que têm ou podem ter COVID-19.

Transparência do processo de produção e divulgação: o artigo não teve revisão por pares; ele não deve substituir o julgamento clínico individual e as fontes citadas devem ser checadas. O ponto de vista expresso neste comentário representa o ponto de vista dos autores e não necessariamente o ponto de vista da instituição sede, o NHS, o NIHR, ou o Departamento de Saúde. Os pontos de vista não substituem a recomendação do médico.

Link para o original: https://www.cebm.net/spreading-sars-cov-2-through-ocular-fluids/

Deve ser citado como: Robin E Ferner, Philip I Murray, Professor of Ophthalmology, University of Birmingham, UK and Jeffrey K Aronson. https://www.cebm.net/spreading-sars-cov-2-through-ocular-fluids/