Tradutores: Ana Paula Pires dos Santos, Rachel Riera


 

30 de abril de 2020

Um tema recorrente da cobertura da COVID é o medo (ou a sólida predição) de uma segunda ou terceira onda da doença.

Tom Jefferson, Carl Heneghan

 

Um tema recorrente sobre a COVID é o medo (ou a sólida predição) da segunda ou terceira onda da doença. Devemos “nos preparar para a segunda onda da COVID.” O primeiro-ministro do Reino Unido, falando de Downing Street na segunda-feira de manhã, insistiu que o povo do Reino Unido continue aderindo às “medidas duras” para evitar um “segundo pico” da COVID-19.

A segunda ou terceira onda são muitas vezes retratadas como muito prováveis, inevitáveis ou prováveis, baseado em estudos de modelagem.

Assim como no mar, as ondas são geralmente precedidas por um recuo, mas esta analogia visual quase nunca é mencionada; nem a pertinência de prever as ondas em uma pandemia de coronavírus. Revisamos as evidências (estratégia de busca estão apresentadas ao final) que sustentam a teoria da segunda onda.

A História está repleta de referências a pandemias de vírus respiratórios ou a epidemias graves. No entanto, utilizamos apenas aqueles episódios para os quais existem relatos contemporâneos razoáveis.

Estes dez surtos começam com a pandemia de 1889-92 e terminam com a atual pandemia. Suas principais características conhecidas estão resumidas na Tabela.

Anos Propagação Estação de início Possível

origem

Observações
1889-92 Global Primavera Rússia* Duas fases, a última mais grave
1898-1901 Europa, América, Austrália Desconhecida Desconhecida* Leve
1918-20 Global Primavera EUA ou China Duas fases, a última mais grave
1946-48 Global Desconhecida Austrália ou China Leve
1957-58 Global Primavera China Duas fases igualmente graves
1968-69 Global Verão China Disseminaão lenta, relativamente leve
1977-78 Global Primavera China Incerto devido à co-circulação de outros vírus influenza
2002-2003 Sudeste asiático, Canadá Outono China Várias fases
2009-10 Global Primavera México Leve, duas fases
2019-current Global Inverno China Em curso

* = causalidade pelos vírus influenza foi inferida por estudos sorológicos em sobreviventes;

(Baseada em Potter CW. Chronicle of influenza pandemics. In: Nicholson KG, Webster RG, Hay AJ, editors. Textbook of influenza. London: Blackwell Scientific Publications; 1998. p. 3–18)

A tabela resume esquematicamente o que é conhecido sobre os surtos. Com exceção do SARS-CoV-1 e SARS-CoV-2, todos os outros surtos foram atribuídos aos vírus influenza A por resultados laboratoriais positivos ou inferidos por perfis de anticorpos reconstruídos por levantamentos sorológicos de sobreviventes.

 

 

Quantas ondas?

  • Os últimos cinco surtos, desde 1957-58, ocorreram no espaço de dois anos;
  • Cinco surtos são descritos como tendo uma segunda fase
  • 2009-10 teve duas fases leves;
  • 2002-2003 teve várias fases que ocorreram dentro de um ano;
  • 1957-58 teve duas fases que foram igualmente graves;
  • 1889-92 e 1918-20 tiveram duas fases, sendo a última descrita como mais grave.

 

Teoria da segunda “onda”

A maior parte do nosso pensamento sobre a teoria da segunda onda surge a partir da “gripe espanhola” de 1918-20 que infectou 500 milhões de pessoas em todo o mundo e que supostamente matou cerca de 20 milhões a 50 milhões. Em agosto de 1918, surgiu uma cepa mais mortal da “gripe espanhola”. Ao ler a história da “gripe espanhola”, nós devemos lembrar o papel da censura militar. A identidade do caso índice permanece um mistério. Um acampamento do exército americano no Kansas, um acampamento britânico em Etaples, na França, e até mesmo concentrações de tropas alemãs para as ofensivas de primavera são localizações possíveis. A censura também é responsável pela denominação “espanhola” ligada à pandemia. Como a Espanha não estava na guerra e não tinha censura, todos os casos pareciam ter origem na Espanha – um exemplo de viés de identificação.

Há vários problemas adicionais ao revisar e interpretar essas evidências. Estes vão desde lembrar a sequência de eventos distantes, até explicar a co-circulação do vírus influenza sem precedentes históricos, até identificar circunstâncias que favorecem a propagação. O verdadeiro número de mortes por “gripe espanhola” é altamente incerto; não está claro, por exemplo, se elas foram realmente causadas pela gripe, que não era uma doença notificável na época, e qual foi o papel da superinfecção bacteriana – as estimativas são, portanto, palpites informados.

A “gripe espanhola” direciona grande parte das respostas de modelagem a pandemias. Não há, entretanto, amostras virais confiáveis do surto que confirmem qualquer uma das hipóteses relacionadas a este episódio. Duas sequências de RNA foram recuperadas de espécimes históricos de duas vítimas diferentes, mas elas não apresentam características particulares que possam explicar a virulência.

 

 

O que se entende por “ondas”?

O termo “onda” vem do surto de 1889-92 que teve diferentes fases, que supostamente ocorreram ao longo de vários anos.

Para a gripe, as férias escolares são consideradas um dos mecanismos para a redução da transmissão. As reduções de contato nas férias de verão do surto de 2009, levaram ao ‘recuo’ de verão; antes de a infecção atingir o pico novamente – a ‘onda’ – no inverno.

Tanto os surtos de 1918 como os de 2009 são semelhantes, no sentido de que começaram na “onda da primavera” e seguiram no verão. Acredita-se que esses atrasos nos números iniciais de infectados na primavera/verão tenham pouco impacto na taxa geral de ataque.

Tem sido sugerido que as pandemias anteriores são caracterizadas por ondas de atividade espalhadas por meses. Entretanto, há evidências inconsistentes de tais padrões em todas essas oito epidemias e pandemias de influenza. Como elas passam a rapidamente exibir sazonalidade nos anos seguintes e juntamente com outros vírus respiratórios agudos tendem a favorecer padrões sazonais de circulação em clima frio.

“Ondas” sugerem uma falta de circulação viral que provavelmente é uma ilusão. É possível que algumas das “ondas” ou fases secundárias tenham sido causadas ou favorecidas pela co-circulação de outros microrganismos. Ondas também são visíveis e na maior parte das vezes rítmicas. Não parece haver qualquer padrão ou ritmo para as epidemias resumidas na tabela e suas idas e vindas só são visíveis devido aos efeitos sobre o corpo humano e seu impacto na sociedade.

Além disso, nenhum desses agentes foi capaz de infectar uma população inteira de uma só vez.

 

Como os coronavírus se diferem

Até o momento os coronavírus associados à doença tipo influenza apresentam circulação sazonal e assim como outros agentes tais como rinovírus e influenza são causas de doença tipo influenza. Diferentes tipos de coronavirus coexistem na maioria das temporadas de inverno em países como o Reino Unido, e o surto atual está associado à latitude e mortes por COVID e casos no hemisfério norte.  No entanto, MERS está principalmente associada a contatos com camelos e SARS 2002-03 não foi identificada desde então.

Temperaturas mais altas provavelmente afetam a sobrevivência dos SARS-CoV-2. Como consequência, os países com temperaturas e umidade relativa mais altas podem ter achado mais fácil o manejo do surto por este motivo. Entretanto, embora a maioria dos grandes surtos tenha surgido dentro de uma faixa estreita de temperatura, não houve surtos semelhantes em alguns países com as mesmas faixas de temperatura. As razões para esta disparidade não são atualmente claras.

 

 

COVID – ‘onda’ ou surtos esporádicos?

A teoria das pandemias é sombria. A mais conhecida é a teoria cíclica baseada na ocorrência da gripe. Ela prevê ciclos de infecção quando a imunidade natural ao agente anterior desaparece com o falecimento dos sobreviventes. Este ciclo, até pouco tempo atrás se pensava que se estendesse por aproximadamente 70 anos. Entretanto, esta teoria não se encaixa em todas as evidências e a ascensão de outros agentes microbiológicos como os coronavíruss impõe um repensar radical e uma investigação adequada da ecologia dos agentes respiratórios menos conhecidos.

O desaparecimento de um vírus respiratório durante décadas com um reaparecimento repentino, em alguns casos praticamente inalterado, requer uma investigação séria. Entretanto, a natureza caótica das epidemias e sua consequente perturbação deve nos levar a ser cautelosos na previsão do futuro.

Não sabemos ao certo se a COVID irá se repetir em fases, ou surtos esporádicos ou desaparecer por completo.

 

Conclusão

Fazer declarações de certeza absoluta sobre a “segunda onda” é insensato, dadas as incertezas substanciais e a novidade das evidências. Como não podemos ver o futuro e nossa compreensão deste novo agente está em sua infância, pensamos que o planejamento para estar preparado deve ser inspirado por uma vigilância robusta, pela flexibilidade de resposta e pela rígida separação dos casos suspeitos ou confirmados. Estas medidas devem ser aplicadas a todos os surtos graves de doenças respiratórias.

São necessárias melhores evidências e melhor compreensão. A Covid-19 vai ficarem nossas mentes.

Tom Jefferson é um tutor associado senior e pesquisador honorário, Centro de Medicina Baseada em Evidência, Universidade de Oxford.  Declaração de conflitos de interesse aqui

Carl Heneghan é professor de Medicina Baseada em Evidência e diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidência. Declaração de conflitos de interesse aqui).

Aviso: o artigo não foi revisado por pares; ele não deve substituir o julgamento clínico individual e as fontes citadas devem ser verificadas. As opiniões expressas neste comentário representam as opiniões dos autores e não necessariamente as da instituição anfitriã, do NHS, do NIHR, ou do Departamento de Saúde e Assistência Social. Os pontos de vista não devem substituir o aconselhamento médico profissional.