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Há cerca de pouco mais de um ano, vimos assistindo um intenso e passional debate sobre a liberdade e a autonomia do médico para prescrever tratamentos aos pacientes em tempos de pandemia. Sem entrar no mérito de qualquer conotação política que envolva a discussão, penso que devemos fazer uma reflexão profunda sobre o assunto, fugindo de análises rasas e enxergando o tema não apenas no contexto de uma pandemia, mas do ato médico a qualquer tempo e em outras circunstâncias.

 Autonomia e liberdade

Segundo o dicionário Michaelis, autonomia é definida por “sf 1. Capacidade de autogovernar-se, de dirigir-se por suas próprias leis ou vontade própria; soberania. Ainda no mesmo rol de definições, sob o ponto de vista administrativo, significa “…5. Liberdade moral ou intelectual do indivíduo; independência pessoal; direito de tomar decisões livremente.” e no contexto filosófico “…6. Liberdade do homem que, pelo esforço de sua própria reflexão, dá a si mesmo os seus princípios de ação, não vivendo sem regras, mas obedecendo às que escolheu depois de examiná-las.”

Porém, autonomia não significa liberdade irrestrita. Curiosamente, este pressuposto é muito utilizado para justificar opiniões pessoais e não surgiu na pandemia. Vemos com muita frequência médicos (e outros profissionais de saúde) resistentes a seguir diretrizes assistenciais ou protocolos de segurança do paciente, com a justificativa de que a sua autonomia estaria sendo tolhida. Tive a oportunidade de participar da certificação ONA (Organização Nacional de Acreditação) de um hospital, na qualidade de coordenador médico da gestão de Qualidade. Um dos desafios mais difíceis foi lutar contra a resistência dos médicos a protocolos de segurança do paciente internacionalmente aceitos (e para os quais existe vasta evidência de benefício), que usavam a justificativa de que sua liberdade e autonomia estavam sendo reprimidas. E sob o argumento da autonomia, surgem frequentemente práticas que colocam os pacientes em risco, algumas vezes sabidamente prejudiciais, como por exemplo a prescrição de antibióticos sem indicação clara, a recusa a aceitar protocolos institucionais de diagnóstico e tratamento, a solicitação indiscriminada de exames diagnósticos e de acompanhamento, o uso de tratamentos sem comprovação de eficácia e segurança, entre outros.

Autonomia e Segurança

Autonomia não é um cheque em branco dado ao médico na relação entre ele e o paciente. Em uma situação nova e desconhecida (como a Covid-19), assim como em situações em que não há consenso sobre as medidas terapêuticas, é comum que a autonomia do médico surja como uma bandeira em defesa de abordagens diagnósticas e principalmente terapêuticas sem comprovação científica de benefício e segurança. É compreensível que a maioria dos profissionais esteja imbuída de sentimentos legítimos de bondade e da intenção de não poupar esforços para salvar vidas ou aliviar o sofrimento de pacientes e familiares. Mas isto deve ser feito à luz da ciência e de uma primeira premissa tão antiga quanto a Medicina: “primo non nocere” (primeiro não causar dano). Primeiro devemos garantir que todos os pacientes recebam tratamentos que não lhes causem dano, e que tragam benefícios maiores que possíveis riscos. O Código de Ética Médica (Resolução CFM n° 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019) fala sobre a autonomia do médico em seu Capítulo I – Princípios Fundamentais que:

“…  I – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

V – Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade.

VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.

VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.

XVI – Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios cientificamente reconhecidos a serem praticados para estabelecer o diagnóstico e executar o tratamento, salvo quando em benefício do paciente. “

 Fica claro que a liberdade e a autonomia são limitadas ao serem regidas por princípios que assumem que as condutas sejam norteadas por evidências científicas de benefício e segurança, preservando a correção e eficiência de seu trabalho. Quando a autonomia médica é usada como subterfúgio para fugir destes princípios, o médico deve assumir as consequências de seus atos como dita o próprio Código de Ética Médica no mesmo capítulo:

“ … XIX – O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência.

 XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.”

Autonomia, responsabilidade e omissão

O momento dramático que estamos vivendo acaba por inflamar a posição dos que defendem “fazer qualquer coisa” ou “não sermos omissos”. Luís Claudio Correia, professor adjunto e coordenador do Centro de Medicina Baseada em Evidëncias da Escola Bahiana de Medicina e autor do Blog “Medicina Baseada em Evidências”, nos lembra por que não nos devemos sentir omissos ao NÃO prescrever tratamentos sem comprovação de eficácia:

  1. Boa parte dos tratamentos que presumidamente poderiam ser eficazes não o são quando testados com o método científico adequado. Inúmeros exemplos ilustram esta afirmativa, como a reposição hormonal na prevenção de desfechos cardiovasculares em mulheres, ou mesmo na recente polêmica envolvendo o uso da cloroquina para Covid-19. Estudos observacionais levantam hipóteses que devem ser testadas com o método adequado, e na maioria das vezes os tratamentos não se mostram eficazes.
  2. Mesmo quando o benefício é comprovado, o impacto clínico geralmente é marginal na maioria dos casos, e individualmente pode não ser justificado. Devemos levar em consideração que são muito raros os tratamentos que reduzem desfechos importantes de forma significativa. E devemos levar ainda em consideração que os riscos individuais diferem entre um paciente e outro.
  3. A probabilidade de consequências não intencionais desconhecidas e potencialmente danosas em novos tratamentos pode preceder e ser maior do que a probabilidade de benefício. Intuitivamente tendemos a pensar de forma contrária, talvez pelo desejo de fazer o bem ao paciente, e esquecemos do outro lado da moeda, o do risco de dano.

               Interessante observar que os próprios médicos e pacientes que defendem a autonomia do médico em prescrever tratamentos sem comprovação científica criticam veementemente, em redes sociais, aqueles que não prescrevem, esquecendo que a autonomia é uma via de mão dupla. Relatos de tentativas de coação por parte de pacientes aparecem em noticiários e redes sociais, cada vez mais inflamados e com tons ameaçadores.

Autonomia baseada em ilusões

Temos visto que os defensores da prerrogativa de “fazer alguma coisa” quase sempre se apoiam em relatos anedóticos de sucesso – “eu tomei isso ou aquilo e não tive Covid”, “sei de pessoas que estão tomando tratamento A ou B e não tiveram nada”. Entra em jogo um viés psicológico perigoso quando o campo de aplicação é a Medicina, o “viés da ilusão de controle” e o “viés de confirmação”. Somos treinados na escola médica a acreditar que, quando aplicamos um tratamento, este irá invariavelmente surtir efeito em todos os pacientes que o receberem. Isto infelizmente não é verdade. É uma ilusão de que estamos no controle da evolução do paciente. Alguns serão beneficiados, outros não terão o benefício. Mesmo os que não terão benefício podem ter desfechos positivos por mecanismos naturais aleatórios. Especialmente quando acreditamos no efeito do suposto tratamento, abre-se um registro mental com muito mais facilidade quando vemos um caso que confirme a nossa crença (confirmação) do que quando vemos casos de evolução contrária, que tendemos a não registrar com a mesma facilidade em nossa mente.

Por fim, infelizmente a maioria dos médicos não é treinada para a prática do pensamento científico, e tem conhecimentos limitados de métodos de pesquisa. Vemos com tristeza condutas e defesas fervorosas de conduta A ou B baseadas em estudos com falhas ou limitações graves, que não poderiam jamais justificar as condutas médicas tomadas. Sim, os médicos, na maioria, são médicos, não são cientistas.

Não é infrequente que, ao defendermos a prática clínica baseada em evidências, sejamos tratados como omissos, ou me atrevo a dizer até como pessoas que parecem que estão torcendo contra a cura da Covid-19. Mas cabe refletir: será que também devemos sair por aí propagando tratamentos duvidosos ou mesmo deletérios para pacientes com câncer, Alzheimer, esclerose múltipla, ou mesmo diabetes mellitus?  Não! Estamos torcendo a favor da cura da Covid-19 (e de todas as outras) através da comprovação científica de benefício e segurança, respeitando os valores dos pacientes e a ética que envolve a profissão médica.

 

Luis Eduardo Fontes é médico, cofundador da Oxford-Brazil EBM Alliance e professor da Faculdade de Medicina de Petrópolis.

Revisão jornalística: Patricia Logullo

 

AVISO: “As opiniões expressas pelo autores dos textos publicados na seção não representam necessariamente o posicionamento da Oxford-Brazil EBM Alliance.”