Tradutores: João Roquette, Rachel Riera


 

14 de abril de 2020

Robin E Ferner*, Jeffrey K Aronson

Em nome do Oxford COVID-19 Evidence Service Team

Centre for Evidence-Based Medicine, Nuffield Department of Primary Care Health Sciences

University of Oxford

*University of Birmingham

Correspondencias para r.e.ferner@bham.ac.uk

 

 

PARECER

Os dados atuais não apoiam o uso de hidroxicloroquina para profilaxia ou tratamento da COVID-19. Não há ensaios clínicos publicados no contexto da profilaxia. Os dois ensaios clínicos randomizados (ECR) no contexto do tratamento com hidroxicloroquina disponíveis em domínio público, um deles não revisado por pares, são análises precoces publicadas dos ensaios cuja condução, em ambos os casos, divergiu do protocolo disponível nos sites de registros de ensaios clínicos. Nenhum desses estudos, nem outros três ensaios negativos que surgiram desde então, reforçam a visão de que a hidroxicloroquina é efetiva no manejo, ainda que das formas leves, da COVID-19.

INTRODUÇÃO

Até o momento (14 de abril de 2020), forma identificados 142 registros de ensaios clínicos em vários bancos de dados nacionais e internacionais envolvendo cloroquina e hidroxicloroquina utilizadas de forma isolada ou em combinação com outros medicamentos na prevenção ou tratamento da COVID-19. A maior parte são ensaios clínicos abertos (não-cegos).

Durante a elaboração deste texto, cinco publicações dos resultados obtidos das observações clínicas do tratamento da COVID-19 com hidroxicloroquina surgiram: um ensaio clínico não-randomizado aberto no qual pacientes receberam hidroxicloroquina ou hidroxicloroquina + azitromicina; um ECR controlado por placebo, aberto, de hidroxicloroquina; e três outros estudos clínicos, um ECR comparando hidroxicloroquina com o tratamento padrão, uma série de casos, e um estudo observacional desenhado para simular um ensaio clínico randomizado controlado em 181 pacientes.

Foram avaliado os protocolos e as publicações preliminares dos dois primeiros estudos citados, cujos resultados encontram-se em domínio público e apoiam o uso de hidroxicloroquina. Foram adicionadas breves observações sobre os três últimos estudos, os quais foram todos negativos.

  1. Hidroxicloroquina e azitromicina no tratamento de COVID-19: resultados de um ensaio clínico não randomizado aberto.

O protocolo (EU Clinical Trials Register No. 2020-000890-25/FR)

  1. O título deste estudo, conforme registrado no protocolo, deveria ser: “Treatment of Coronavirus SARS-Cov2 Respiratory Infections with Hydroxychloroquine”.
  2. Ele foi conduzido em um único centro em Marseille.
  3. O objetivo primário foi reduzir o período em que o virus está presente no organismo e com isso, reduzir o contágio
  4. O objetivo secundário foi avaliar a efetividade clínica do tratamento por meio do tempo até a melhora da febre, tempo até a normalização da frequência respiratória, tempo de internação hospitalar e mortalidade.
  5. O tratamento planejado era composto por hidroxicloroquina em comprimidos de 200mg (nome comercial Plaquenil ®), porém não houve especificação do esquema de doses a ser empregado.
  6. Os momentos planejados para avaliação dos desfechos incluíram os dias 1, 4, 7 e 14. Foi programada avaliação no momento da alta hospitalar apenas para os desfechos secundários
  7. O protocolo do estudo previa a inclusão de 25 indivíduos com idade superior a 12 anos (cinco participantes com idade entre 12 e 17 anos, 10 entre 18 e 64 anos e outros 10 com idade acima de 65 anos), porém não foram utilizados grupo controle, método de randomização ou qualquer forma de cegamento. [Aparentemente também não foi planejado que seria um ensaio clínico aberto, mas isso deve ter sido apenas uma “falha na hora de marcar o x no lugar certo”.]
  8. Recusa na participação do estudo foi um critério pré-determinado de exclusão dos participantes.

A publicação  (Gautret et al. Int J Antimicrob Agents 2020 Mar 20: 105949)

  1. Há duas alterações importantes no título: (a) Partindo do imparcial “Tratamento … com” para o tendencioso “… como um tratamento para”e (b) inclusão de azitromicina que não foi pré-especificada. O tratamento consistia em hidroxicloroquina 600mg/dia associada a azitromicina 500mg no primeiro dia seguido por 250mg/dia nos 4 dias consecutivos.
  2. O estudo descreveu resultados preliminares obtidos de 36 pacientes, dos quais 20 receberam o medicamento em estudo, todos tratados em Marseille. “O seguimento clínico e a ocorrência de efeitos adversos seão descritos em um artigo futuro ao final do estudo.” As informações sobre os eventos adversos deveriam ter sido incluídas. Em um ensaio clínico deste tamanho, é provável que mesmo reações adversas leves não tenham sido detectadas.
  3. Dezesseis pacientes, dos centros de Marseille, Nice, Avignon, e Briançon, e pacientes que recusaram participar do estudo foram incluídos no grupo controle, o qual não havia sido previsto no protocolo.
  4. Seis pacientes no grupo tratamento receberam hidroxicloroquina com azitromicina, e não hidroxicloroquina de forma isolada. Com base nos dados fornecidos, não é possível identificar de forma precisa quais pacientes foram estes.
  5. Seis pacientes no grupo hidroxicloroquina perderam seguimento; três necessitaram de cuidados intensivos, um faleceu, e um abandonou tratamento devido a náusea. Os pacientes no grupo hidroxicloroquina eram, em média, mais velhos que os pacientes no grupo controle: hidroxicloroquina 51,2 anos (DP ± 18,7), controle 37,2 anos (DP ± 24).
  6. O momento de avaliação dos desfechos foi modificado do programado no protocolo para “presença e ausência do vírus no 6º dia após inclusão no estudo”, o qual não havia sido pré-especificado. Os resultados dos dias 7 e 14 não foram apresentados.
  7. Na tabela suplementar, alguns resultados de PCR são apresentados como o número de replicações necessárias ao diagnostico, enquanto outros são simplesmente classificados como POSITIVOS. Isso não foi explicado, e não está claro se os testes de PCR viral foram todos realizados em um único centro, ou se os responsáveis por testar as amostras eram cegos quanto à alocação dos participantes no estudo, ou se qualquer um desses fatores podem ter acarretado vieses.
  8. Os autores alegam taxas de cura virológica de 100% contra 12,5% no 6º dia. O PCR foi considerado negativo caso o Ct (limiar do ciclo) fosse > 35. O limiar do ciclo é um indicador do número de ciclos nso quais a reação em cadeia da polimerase deve ser executada para demonstrar a presença de RNA viral: o montante de RNA é amplificado duas vezes em cada ciclo, e o RNA precisa ser amplificado inúmeras vezes caso haja pouca quantidade. Após 35 ciclos deve haver 235, i.e. 34,359,738,368 moléculas detectáveis de ácido nucleico.
  9. Não é descrito se a hidroxicloroquina esteve presente nos fluidos corporais em concentrações que possam ter influenciado nos resultados de PCR, embora isso pareça improvável.
  10. Oito pacientes do grupo controle tiveram resultado positivo no dia 0, entretanto não foram fornecidos dados quantitativos quanto ao PCR; e em dois pacientes do grupo controle o teste não foi realizado. Portanto, não é possível afirmar se a carga viral era diferente entre os grupos no início do estudo.
  11. Em um paciente no grupo controle e em três no grupo tratamento, os testes resultaram negativo em um momento, porém tornaram-se positivos posteriormente, gerando dúvidas na escolha de um único dia (o qual não foi pré-determinado) para avaliar a eliminação viral. No 5º dia, por exemplo, a realção de resultados negativos/positivos era 3/6 no grupo controle versus 12/7 no grupo tratamento (p = 0,23 teste exato de Fisher).
  1. Eficácia da hidroxicloroquina em pacientes com COVID-19: resultados de um ensaio clínico randomizado 

O protocolo (Chinese Clinical Trial Registry: ChiCTR2000029559)

 

  1. O título deste estudo, conforme registrado no protocolo, deveria ser “Therapeutic effect of hydroxychloroquine on novel coronavirus pneumonia (COVID-19)”. Tal estudo foi registrado no dia 4 de fevereiro de 2020.
  2. O objetivo descrito foi “Por meio da comparação da eficácia clínica da hidroxicloroquina [sic] e do placebo no tratamento da pneumonia causada pelo novo coronavírus, nós poderemos fornecer novas drogas efetivas para o tratamento clínico do novo coronavírus e melhorar o prognóstico desta doença, conforme extraído do texto
  3. O ensaio clínico deveria ser duplo-cego.
  4. A randomização deveria ser realizada pelo “método estocástico de indicador de grupos.”
  5. O protocolo estipulou três grupos experimentais, cada um com 100 pacientes com pneumonia pelo novo coronavírus. O tratamento pretendido no Grupo 1 era hidroxicloroquina 0,1 (presumivelmente 100mg) dois comprimidos ao dia por via oral; Grupo 2, hidroxicloroquina 0,2 (presumivelmente 200mg]) dois comprimidos ao dia por via oral; Grupo 3, placebo, dois comprimidos ao dia por via oral.
  6. Os critérios de inclusão foram pacientes com pneumonia pelo novo coronavírus que concordaram em participar neste ensaio clínico e que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Os pacientes deveriam ter idade entre 30 e 65 anos.
  7. O único critério de exclusão pré-especificado consistiu em caso os investigadores considerassem que o participante tivesse outras condições que o tornassem inadequado para participar do ensaio clínico ou outras circunstâncias especiais.
  8. Os desfechos co-primários pretendidos foram descritos como: (a) Tempo para que o PCR do novo coronavírus se tornasse negativo; (b) Tempo de recuperação de CD4, CD8 e outras células T.
  9. Um comitê de gerenciamento de dados foi definido.

O relatório (Chen et al., medRxiv 2020.03.22.20040758. doi:10.1101/2020.03.22.20040758)

 

  1. O objetivo, conforme estabelecido no protocolo, já revela a expectativa de que o medicamento seja eficaz antes mesmo do ensaio.
  2. A mudança do titulo, de um imparcial (“Efeito terapêutico…”) para um tendencioso (“Eficácia…”) sugere um desfecho que acreditamos que os dados não sustentam.
  3. O relatório do estudo menciona cinco critérios de inclusão, dos quais o primeiro (idade acima de 18 anos) é diferente do pré-especificado. Os outros definem o diagnóstico de pneumonia, que foi pré-especificado, porém não de forma tão detalhada.
  4. O critério de exclusão pré-especificado não define quais “outras condições” tornariam um paciente “inadequado a participar”, dando espaço para um viés de seleção. O relatório menciona seis critérios de exclusão, os quais não foram pré-especificados.
  5. O relatório do estudo fornece detalhes de 62 pacientes com COVID-19, sendo que todos receberam o tratamento padrão, enquanto 31 destes pacientes foram randomizados para receber hidroxicloroquina 200mg duas vezes ao dia além da terapia padrão. Não há explicação sobre a redução no número de pacientes, de 300 pacientes previamente especificados para os 62 efetivamente recrutado> Também não há explicação sobre a decisão de omitir, como parece que foi feito, o grupo de baixa-dose. Os cálculos das estimativas de poder da análise não foram incluídos no protocolo.
  6. Todos pacientes relatados testaram positivo para a infecção por SARS-CoV-2 por meio do rt-PCR, todos tiveram evidências tomográficas de pneumonia, e todos tinham formas leves, conforme definido por saturação de oxigênio. Isto significa que o estudo não fornece nenhuma informação sobre o valor da hidroxicloroquina na profilaxia da doença.
  7. Os pacientes no estudo possuíam 18 anos ou mais, enquanto o protocolo especificava pacientes entre 30 e 60 anos. Embora a média de idade e seus desvios-padrão (DP) dos pacientes de cada grupo tenham sido relatados, a proporção de cada grupo nos diferentes percentis de idade não é descrita. Caso a idade dos pacientes apresentasse distribuição normal, o alcance de idades poderia variar desde tão jovem quanto 12 anos até tão idoso quanto 76 anos.
  8. Os desfechos avaliados não podem ter distribuição normal. Tal consideração foi extensamente discutida por Yap, Wilkinson, and Dahly em sua revisão estatística deste estudo.
  9. O tratamento padrão incluiu “agentes antivirais, agentes antibacterianos, e imunoglobulina intravenosa com ou sem o uso de corticoesteroides.” Os agentes antivirais e antibacterianos não foram especificados, e a proporção de indivíduos em cada grupo que recebeu qualquer agente não foi descrita. Isto (a falta de controle das cointervenções) pode ter acarretado viés.
  10. Embora o estudo devesse ser duplo-cego, e o protocolo referir que comprimidos de amido (placebo) deveriam ser utilizados no grupo controle, não há menção se houve administração de tratamentos simulados (técnica de “double dummy”) na publicação do estudo.
  11. A randomização foi realizada por meio de uma “lista gerada por computador estratificada por centro”, aparentemente diferente do pré-especificado. Embora o sigilo da alocação tenha sido satisfatório, a adequação do processo de randomização não pôde ser avaliada, uma vez que as características de base de cada grupo no início do estudo não foram descritas. Não está claro como o cegamento foi mantido durante a condução do estudo.
  12. Uma análise adicional foi realizada em relação às tomografias computadorizadas de tórax nos dias 0 e 6, que mostrou melhora em 25/31 dos pacientes do grupo hidroxicloroquina e em 17/31 no grupo controle. Estes resultados não são tão significativos ao nível de relevância estatística de 0,05 (teste qui-quadrado com correção de Yates = 3,62; p = 0,057). Não está claro ainda, se os investigadores responsáveis por avaliar as imagens foram cegos em relação à alocação terapêutica dos pacientes.
  13. Análises foram feitas 5 dias após o recrutamento ou a ocorrência de reações adversas graves. Eventos adversos, diferentemente de reações adversas suspeitas, não foram mencionados ou registrados. Não foram fornecidos detalhes sobre os critérios diagnósticos utilizados para reações adversas medicamentosas.
  14. Nenhum indicativo dos desfechos finais foi fornecido, especificamente óbitos.
  15. Os resultados dos desfechos descritos foram tempo até melhora clínica, tempo até melhora da febre, tempo até remissão da tosse. Além disso, foram fornecidos dados quanto a melhora ou deterioração radiológica da pneumonia. Estes desfechos clínicos não foram mencionados no protocolo. Assim como, os desfechos virológicos e hematológicos pré-especificados não foram mencionados no relatório do estudo.
  16. O critério para determinar temperatura corporal normal era complexo e dependia do local de mensuração; temperatura retal ou timpânica até 37,8ºC era considerada normal.
  17. Tosse e febre não foram documentadas em 25/61 e 23/61 (respectivamente) dos pacientes no início do estudo. A ausência de sintomas típicos de COVID-19 pode, dessa forma, significar que os pacientes não eram representativos da doença.
  18. Tosse persistiu por uma média de 2 dias (DP ± 0,2) no grupo tratamento e por uma média de 3,1 dias (DP ± 1,5) no grupo controle. Febre persistiu por uma média de 2,2 dias (DP ± 0,4) no grupo tratamento e por uma média de 3,2 dias (DP ± 1,3) no grupo controle. Tanto para tosse quanto para febre, o desvio-padrão nestes dois grupos é surpreendentemente diferente. Portanto, as comparações pelo teste-t podem ter sido inapropriadas.
  • Os desfechos são descritos como sendo estatisticamente significantes, porém não está claro se eles foram clinicamente relevantes. A mínima diferença clinicamente relevante (MCID, do inglês “minimal clinically important diferences”) não foi discutida. O comitê para gerenciamento dos dados mencionado no protocolo não foi mencionado no relatório.
  1. Chen J, Liu D, Liu L, Liu P, Xu Q, Xia L, Ling Y, Huang D, Song S, Zhang D, Qian Z, Li T, Shen Y, Lu H. A pilot study of hydroxychloroquine in treatment of patients with common coronavirus disease-19 (COVID-19). Journal of Zhejiang University

March 2020. DOI:10.3785/j.issn.1008-9292.2020.03.03.
No sumário em inglês desta publicação chinesa, Chen e colaboradores descrevem um estudo randomizado com 30 pacientes com COVID-19 confirmada, os quais receberam hidroxicloroquina e tratamento convencional ou tratamento convencional isolado. Um paciente no grupo hidroxicloroquina desenvolveu a forma grave da doença durante o tratamento. No 7º dia, o PCR no swab de orofaringe resultou negativo em 13 pacientes que receberam hidroxicloroquina e em 14 pacientes no grupo controle. Outros parâmetros (tempo até normalização da temperatura corporal, progressão radiológica, e melhora clínica) também foram semelhantes nos dois grupos, assim como, os eventos adversos relatados. Este aparenta ser um estudo aberto. Este estudo não possuiu poder estatístico para detectar pequenas diferenças na progressão da doença, e ainda que tais diferenças tivessem ocorrido, provavelmente não teriam relevância clínica. Não há muito o que aprender a partir deste estudo, porém ele corrobora superficialmente nossa visão de que a hidroxicloroquina é ineficaz mesmo nas formas leves de COVID-19.

  1. No Evidence of Rapid Antiviral Clearance or Clinical Benet with the Combination of Hydroxychloroquine and Azithromycin in Patients with Severe COVID-19 Infection. Molina et al. Médecine et Maladies Infectieuses 2002; in press. doi:https://doi.org/10.1016/j.medmal.2020.03.006 

Neste breve comentário,  Molina e colaboradores descrevem o uso da combinação de hidroxicloroquina e azitromicina em 11 pacientes consecutivos sob seus cuidados, utilizando o mesmo esquema de doses descrito no estudo ‘A’ citado previamente acima. Um paciente faleceu dentro de 5 dias e outro foi retirado do estudo após 4 dias devido ao prolongamento do intervalo QT. Em 8 dos 9 pacientes restantes, os swabs de nasofaringe permaneciam positivos para SARS-CoV-2 passados 5 a 6 dias do início do tratamento.

Os autores contrastam os resultados obtidos com aqueles de Gautret et al. (descrito acima, como A) e concluem que “não encontramos evidência de forte atividade antiviral ou benefício clínico da combinação de hidroxicloroquina e azitromicina”.

É difícil tirar conclusões positivas em qualquer direção a partir deste pequeno estudo bservacional. Entretanto, outras evidências de que a combinação de azitromicina com hidroxicloroquina pode levar ao alargamento do intervalo QT, e, associado a isso, ao risco de arritmias cardíacas fatais, nos faz lembrar os riscos de utilizar medicamentos, ainda que conhecidos de longa data, para condições clínicas novas quando esses não foram testados por meio de ensaios clínicos rigorosos.

  1. No evidence of clinical efficacy of hydroxychloroquine in patients hospitalised for COVID-19 infection and requiring oxygen: results of a study using routinely collected data to emulate a target trial.  Mahévas et al. medRxiv 2020 https://doi.org/10.1101/2020.04.10.20060699

Este é um relato não revisado por pares de um estudo observacional comparativo desenhado para simular um ensaio clínico randomizado utilizando dados de “mundo real” obtidos de cuidados de rotina de 181 pacientes internados com pneumonia hipoxêmica devido a COVID-19. No total, 84 pacientes receberam hidroxicloroquina 600mg/dia dentro de 48 horas da internação, além do tratamento padrão; 97 não receberam. Não houve diferença na gravidade inicial da doença.  Uma análise ponderada forneceu os resultados resumidos na tabela abaixo. Os autores concluíram que “Estes resultados não corroboram o uso de hidroxicloroquina em pacientes internados por pneumonia hipoxêmica por SARS CoV-2 confirmada.”

 

Desfecho

Grupo Risco relativo (IC 95%)
Com

hidroxicloroquina

Sem hidroxicloroquina
Transferência para UTI ou morte em até 7 dias 20,2% 22,1% 0.91

(0,47–1,80)

Morte em até 7 dias 2,8% 4,6% 0.61

(0,13–2,89)

Síndrome do desconforto respiratório agudo em até 7 dias 27,4% 24,1% 1.14

(0,65–2,00)

Prolongamento do intervalo QT necessitando interrupção do medicamento 8 0

Este é o melhor estudo publicado até o momento. Os autores tomaram medidas para reduzir o risco de viés de confusão dependente de tempo e para descartar fatores de confundimento. Eles simularam a randomização e ajustaram as diferenças, existentes no início do estudo, entre as variáveis presentes nos dois grupos, utilizando um modelo de regressão logística multivariável não-parcimonioso pré-especificado. Eles também registraram os eventos adversos e, particularmente, tiveram o cuidado de medir o intervalo QT. Entretanto, há limitações: por exemplo, confundidores não mensurados podem tem enviesado os resultados e quatro variáveis prognósticas potencialmente relevantes não puderam ser ajustadas no modelo. Os autores, portanto, insistem por cautela na interpretação dos resultados, especialmente os de mortalidade global, com poucos eventos observados e um intervalo de confiança muito amplo.

 

CONCLUSÕES

Em ambos estudos discutidos em detalhes acima, há grandes divergências entre os estudos como descritos no protocolo e como apresentado nas publicações. Tais divergências provavelmente levaram a vieses que podem tornar inválidas as conclusões obtidas pelos autores.

O primeiro estudo é aberto e não-controlado e nós não podemos ter certeza no segundo estudo sobre a qualidade do sigilo de alocação ou do cegamento ao longo do estudo. Outros problemas metodológicos incluem dúvidas sobre até quanto os critérios de inclusão e exclusão foram respeitados, quanto ao uso de outros medicamentos que não foram totalmente descritos nos relatórios, e quanto à adequação da análise estatística.

Os desfechos avaliados, ainda que estatisticamente significativos, podem não ter relevância clínica. Os resultados no segundo estudo nos fazem lembrar de desfechos semelhantes nos estudos do oseltamivir, os quais relataram menor duração da doença nos casos de Influenza, entretanto levaram a inúmeras reações adversas; os autores de uma revisão sistemática  dos ensaios clínicos concluíram que “a evidencia dos efeitos clinicamente significativos nas complicações e na transmissão viral é limitado devido à raridade de tais eventos e devido à problemas com os desenhos de estudo. Deve-se ter em mente a razão entre os benefícios e os malefícios na hora de tomar decisão quanto ao uso de oseltamivir para tratamento, profilaxia ou estocagem.” Nós podemos imaginar uma revisão sistemática futura quanto ao uso de hidroxicloroquina em COVID-19 chegando às mesmas conclusões.

No nosso ponto de vista, estes dois estudos não corroboram a argumentação de que a hidroxicloroquina (e, por conseguinte, a cloroquina) é efetiva no manejo, ainda que de formas leves, de COVID-19. Dois estudos mais recentes negativos, ainda que de baixa qualidade, reforçam tal visão, assim como o estudo mais recente, um estudo observacional desenhado para simular um ensaio clínico randomizado utilizando dados “de mundo real”.

Outros autores levantaram dúvidas semelhantes, tanto sobre o primeiro estudo francês discutido acima (1, 2, 3, e 4), quanto sobre o  estudo chinês, assim como, os autores da revisão estatística mencionada acima.

No presente momento, estamos cientes de 142 ensaios clínicos registrados envolvendo o uso de cloroquina ou hidroxicloroquina ou ambas de alguma forma, tanto como intervenções a serem testadas ou como elementos para comparar para outros medicamentos. Apenas 35% destes foram planejados para serem cegos. Nós estamos aguardando os resultados destes estudos.